Que nem limão

Que nem limão

sexta-feira, 14 de julho de 2017

Carta de despedida

Meus queridos,

Valor de transitoriedade é valor de raridade no tempo. Quem diz isso não sou eu: é Freud. Sei que agora vocês acabam de grudar nos lábios um sorriso que mistura divertimento (e talvez exasperação) e pensaram: com a Angela é sempre Freud. E pensaram certo. Eu não sabia direito como me despedir de vocês, por isso esse momento acabou de entrar no meu "top 5 despedidas difíceis". Parece que eu não aprendi mesmo a dizer adeus. 

Posso contar uma história? Acho que já a contei para muitos de vocês. Eu tive uma avó que foi de uma importância tremenda na minha vida. Ela tinha setenta anos quando eu nasci, e nos anos 80 isso fazia dela uma mulher bem velhinha. Eu gosto muito das lembranças que eu tenho dela, uma senhora enrugadinha, de cabelos enrolados, que gostava de usar brincos e colares, tinha as unhas compridas e pintadas. Quando ela ainda não tinha perdido grande parte da visão, ela passava o dia fazendo crochê. E ela passou muito tempo morando com a minha família. E quando ela foi embora da nossa casa foi muito difícil. Eu não consigo lembrar desse dia. Mas sempre quando eu penso na ausência dela, eu deixo de ser adulta, me faltam palavras e meu sujeito infantil, esse que habita o mundo em que as palavras que me constituíram ainda pertenciam só ao outro, emerge. Esse sujeito, então, vasa. É quando eu choro.

Minha avó se chamava Irene. Até nome de vó ela tinha. Vocês sabem que me interesso muito por nomes, e o dela tem um significado especial, ele deriva de uma palavra que quer dizer paz. Por isso, Irenes seriam pacificadoras. Eu fui descobrir isso mais velha, quando comecei a me interessar pelos nomes (eu tinha uns catorze anos). Sempre achei que minha avó transmitia paz. Ela não costumava se exaltar. E quando acontecia alguma coisa que ela não concordava, ela falava a respeito com um olhar de incredulidade. Fazia um ruído com a boca,  um tsc, e seguia a vida. Ela gostava de doces e levava bala para chupar na cama enquanto ouvia o rádio até dormir. Ela levantava à noite e pegava um copo de refrigerante ao invés de água. Ela era muito divertida. Herdei dela meu apreço pelas balas, pelo refrigerante e pelos momentos intermináveis de ficar fazendo nada, só pensando na vida. Minha avó passava horas sentada pensando em coisas que ela nunca me contou. Tudo isso pra contar que outra herança que ela marcou em mim foi eu ser ruim de despedidas. Ela sempre chorava e ia se esconder nessas horas. Os olhinhos azuis e miúdos dela se enchiam de lágrimas. Como se encheram os meus tantas vezes nas últimas duas semanas.

Por isso, eu peço desculpas por não ter conseguido me despedir de vocês propriamente. Por ter ficado sem palavras diante das que vocês me diziam com tanto carinho. É por causa também disso que resolvi escrever essa cartinha: é que quando a gente chora, a voz embarga e a palavra falta. Minha capacidade escrita sempre foi melhor que a oral, por isso que eu fico tão puta quando alguém diz que ser professor é um dom. Vão lá perguntar para as primeiras turmas que eu dei aula...eles vão dizer, no máximo, que eu era esforçada. E a gente sabe que isso não é bem um elogio, né? Eu não fui uma boa professora desde sempre. Mas eu sempre desejei ser uma boa professora. E eu investi nisso. E vocês sabem o que eu investi nesse desejo? Eu investi o que há de mais caro, o que de mais difícil. Eu investi o que eu tinha de mim.

É por causa disso que quando, nas duas últimas semanas, vocês fizeram festinhas, escreveram frases que eu costumo repetir, cantaram a música que deu origem ao meu bordão preferido, me deram flores, cartas, bolachinhas gostosas embaladas na caneca, marcadores de página personalizados ao melhor estilo xalalá, deixaram recados nas provas, me mandaram e-mails carinhosos e me deram muitos, mas muitos abraços, eu cheguei à nada brilhante conclusão que quando você investe no seu desejo, o retorno é garantido. Mais garantido que poupança. 

Vocês sabem que eu nunca pretendi ser mestre pra vocês. Uma vez, conversando com uma professora minha, eu reclamava sobre os alunos (não sobre vocês, imaginem, vocês são ótimos, jamais reclamei de vocês na vida...na verdade, eram alunos de uma amiga), eu dizia que sempre quando eu começava a querer achar que os alunos eram relapsos, pouco dedicados, pouco esforçados, eu pensava em como eu tinha sido como aluna. Essa professora disse então: é um exercício muito importante. E hoje eu tenho certeza disso. Quando digo que nunca pretendi ser mestre pra vocês, eu me lembro de uma coisa que escrevi no ano passado. Eu disse que vocês me faziam lembrar como era ter 18, 19, 20 anos.

Como vocês sabem, eu sou uma velhinha. Eu não gosto muito de sair de casa, eu reclamo de dor nas costas, nos pulsos, no ciático. Minha voz começou a falhar esse ano, justo quando eu decidi que ia ficar um tempo sem ser professora (eita, porra), mas eu queria que vocês soubessem que eu amo olhar pra vocês. Quando eu digo que sou stalker, é porque eu me divirto em ver as fotos, as stories, as postagens sem noção em dias de aniversário, os comentários inconvenientes quando alguém adiciona outra pessoa no Facebook. 

Tem muita gente aí que pode atestar isso: eu sempre fui velha. Então, vocês exercem em mim uma espécie de fascinação. Eu acho a existência de vocês uma coisa realmente bonita, algo a ser admirado. E eu admiro. Então vocês conseguem imaginar o que é pra mim receber tantas palavras e carinhos e abraços e olhares de vocês? Pois é, é uma grande honra. 

Por isso, quinto ano, quando vocês me chamaram para ser paraninfa, eu disse a vocês: é a maior honra. E eu vou dizer porquê: um paraninfo não é alguém que você acha legal, mas alguém que tem algo a dizer e não sobre a honra em ter sido escolhido, mas sobre ser e estar no mundo. É um título honroso e quem o recebe deve entregar a palavra que humaniza através do afeto presente no último "te vira" que vocês receberão na graduação. De mim vocês já sabem o que esperar: sinceridade, dedicação e um grande ema, ema, ema, cada um com seus problemas se eu entender que é assim que tem que ser. Até porque o mestre sempre sabe resolver os problemas de todos. Eu não sei. Sair da Unicentro carregando essa homenagem é uma linda forma de encerrar um ciclo. E vocês, que conseguem unir dedicação, humor, comprometimento e respeito, me deram isso. Obrigada!



Enquanto uns estão com um pé na saída, outros acabaram de chegar. E eu preciso dizer, primeiro ano, sobre o cagaço que eu sinto em dar aula para vocês. Logo que a gente se conheceu eu já fui dizendo: peguem, mas não se apeguem porque eu tô de saída. Eu não queria ter feito com vocês o vínculo que eu fiz. Eu não queria estar sofrendo por não terminar a disciplina de Desenvolvimento como eu estou. No fim, como acontece nesses casos, quem se apegou fui eu. E me contem como não me apegar a vocês? Diferente dos colegas mais adiantados, vocês ainda estão encantados com o imaginário de uma profissão. E eu vejo que tenho duas funções: desconstruir esse imaginário e contar que, mesmo sem o ideal, quando tem desejo envolvido, vai ter muita angústia, mas muita satisfação também. Deixa eu falar uma coisa agora baixinho, no ouvido de vocês e não deixem os veteranos ouvirem: sejam calouros por mais tempo. Alimentem essa criatura encantada com a novidade que o curso traz. Eu digo isso porque entrar na sala de vocês às sextas feiras, depois de vocês terem tido aula a manhã toda com a Paula, que não é fraca, e ter vocês ali, durante a maior parte do tempo, de corpo e alma presentes, me faz até envergonhar dos dias em que quem chegou cansada fui eu. A gente ficou junto pouco tempo, mas foi lindo. E cada palavra escrita no quadro é um jeito maravilhoso de se despedir de alguém que ama muito as duas coisas: o quadro e a palavra. Que bom que a minha palavra fez marca em vocês. É assim que os objetos permanecem dentro de nós. 


Por falar em palavra, sinto que algumas faltaram na nossa relação. Não sei se já contaram, quarto ano, mas vocês são conhecidos como um grupo crítico. E olhem, eu não tive dúvidas disso desde a primeira vez que eu coloquei meus all stars na sala de vocês e comecei a falar sobre psicanálise e psicopatologia da infância. Faz nove anos que eu dou aula, e tremi nas bases algumas vezes dando aula na 329. E por isso, quando me despedi hoje e recebi mais uma cartinha falando sobre meu lugar de transmissão eu pensei que fiz algo bem. Acho que vocês me ajudaram a quitar parte da dívida, aquela que eu contraí quando meu desejo de ser professora foi plantado, aquela que eu contraí quando encontrei os primeiros professores que, de tão bem que transmitiram o que ensinaram, me colocaram nessa roda devedora de ensinar. Eu achava que nossa relação não tinha muita proximidade, e hoje, eu cheguei à conclusão que fomos muito tímidos. Nossa despedida foi meio envergonhada, mas as flores que vocês me deram serão plantadas e cultivadas e vou lembrar de vocês sempre que as vir florindo. Vocês me tiraram da zona de conforto. Eu também agradeço por isso.


Quando o assunto é zona de conforto, eu estou entendendo que os meus bonitos do segundo ano vão causar nessa universidade nos próximos anos. Por favor, me contem as tretas. Acho muito incrível esse salto que vocês fizeram. Mal chegaram e de repente estão aí, querendo se mandar, é isso mesmo? E o pior é que é. E como eu respeito vocês por isso. Vocês amadureceram muito em um ano. Vocês me ensinaram a dar aula para primeiro ano. Eu não tava acostumada. E vocês me surpreenderam sempre. As provas que vocês escreviam, os trabalhos dedicados e até a atenção que me deram esse ano em Metodologia de Pesquisa, foram grandes demonstrações que eu vou ouvir falar dessa turma até vocês saírem da Unicentro e além. Meu maior sentimento é pelos encontros que a gente não terá. Pelas aulas de psicopatologia da criança, de supervisão de estágio e de jurídica que eu não vou dar pra vocês. É onipotente isso, eu sei. Mas eu queria participar só mais um pouquinho dessa trajetória de vocês. Eu queria ver vocês grandões atendendo pacientes. Não vou ver. Por isso, por favor, me contem! Eu vou amar saber. Eu vou sentir muitas saudades.



Saudade é a palavra, né? Saudade é o nome do que vou sentir do Leituras. Vocês não têm ideia do que vocês me causaram quando se despediram de mim. Eu disse naquele dia que foi a coisa mais bonita que já me aconteceu. E foi. Vocês fizeram algo que de tão bonito eu não consigo narrar. Falta palavra, brotam umas lágrimas gorduchas e eu preciso parar. O grupo de estudos era minha hora do recreio. Vocês citaram Eliane Brum, falando sobre ninguém ser substituível. Eu não minto: eu fico faceira em saber que não sou substituível para vocês. Mas vou falar uma coisa bem importante: vocês também são insubstituíveis. O que vocês me deram foi a sensação que foi traduzida por várias pessoas que me conhecem a fundo: como você vai ficar sem eles? Vai ser difícil. Será que em outro lugar vou fazer outro grupo de estudos de Freud? E vocês? Eu espero que sim para as duas perguntas. Somos insubstituíveis mas não somos únicos. E a vida sempre abre espaço pro novo, então, resta acolher esse novo.



E, finalmente, falando em novo, tem gente que se forma em e vira novo psicólogo, com CRP e tudo. Acho muito importante ser supervisora por causa disso. A gente começa a ter uma noção muito boa, muito clara do que essa formação significa. E o que eu disse pra vocês, meu grupo de supervisão, é muito verdadeiro: eu confio em vocês. Vocês são infernais. Falam sem parar. São distraídos. Subvertem o tempo, as falas, enfim. Vocês fazem isso e ainda assim fazem as coisas direito. Eu fico intrigada. Nossa experiência de supervisão foi rápida. Mas como já havia entre nós uma conexão de longa data, ficou muito fácil. E, uma vez mais, vocês me deixaram chocados pela dedicação e comprometimento sem nunca reclamar. Vocês entenderam muito a bem a parte que eu ensino em que cada escolha é uma renúncia. E a melhor parte, vocês não me odeiam e nem odeiam o mundo por isso. Contem comigo. Eu não vou sair no grupo, era brincadeira. E eu brinco porque vocês me permitem brincar sempre e enviar gifs de madrugada e continuam me respeitando.


E eu acho que é isso que eu queria dizer. Foram quatro anos aqui brincando com vocês. Quatro anos em que respeitei os alunos que encontrei aqui. Em que fui colaboradora. Acho essa palavra esquisita, porque o que eu fiz aqui foi mais que colaborar, isso eu sei. A única certeza que um professor colaborador tem é que ele é passageiro. E é por isso que eu fiz meu trabalho com vocês com tanto amor. Se minha estadia aqui é passageira, que as marcas dessa passagem não sejam. Obrigada por tudo.

Por último, uma última citação de Eliane Brum, senão a carta não seria minha:

Crescer, é compreender que o fato de a vida ser falta não a torna menor. Sim, a vida é insuficiente. Mas é o que temos. E é melhor não perder tempo se sentindo injustiçado porque um dia ela acaba" (da Coluna "Meu filho, você não merece nada)

Sentirei muitas saudades!
Com amor, Angela.




Para ler ouvindo: 







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