Que nem limão

Que nem limão

domingo, 4 de junho de 2017

Passagem

Passagem.

É esse o nome que a gente dá praquele papel em que se leem alguns dados importantes: local de partida, local de destino, horário de saída.

Em 2002 comecei a comprar as primeiras passagens. Foi quando a corda que me liga à minha casa começou a se esticar. Dificilmente falo sobre a casa em que meus pais moram sem dizer "lá em casa". Esse é um dos méritos deles. Eles me deram uma casa pra voltar.

Mas eu comecei a sair dela bem devagarinho, sem ir muito longe. 

Primeiro cento e poucos quilômetros. Em um ano a corda teve que se esticar mais um pouco. Alguns quilômetros a mais, quase cinco anos em que a corda esticava e voltava, esticava e voltava. E eu gostava tanto de lá, que não queria voltar. Mas eu precisava seguir. Esse é o custo de ser adulta: sair de onde a gente se sente confortável.

Aí a corda se esticou demais. Mais do que era possível. Era como se eu não fosse capaz de esticá-la a esse ponto. Voltei. Magoada, triste, confusa. Quase dez anos depois que saí da faculdade, costumo resumir aquele período, que durou uns dois anos, como um stand by. Demorei muito pra acordar. Demorei um tempo tão grande que eu só percebi que eu tinha ficado dormindo muito tempo depois. 

Foi aí que viajar se transformou num sintoma. E eu ia loooooonge, voltava. Ia de novo. Voltava. E assim eu posso sintetizar uma vida entre cidades: Guarapuava, Ponta Grossa, Maringá, São Paulo, Curitiba, Guarapuava de novo, Irati, Rio de Janeiro e Brasília.

E esta última é a mais inusitada, porque para as outras eu ia por causa de mim. E para Brasília, eu nunca fui só por mim. E foi pra lá que ontem eu comprei uma passagem só de ida.  Essa compra começou a ser planejada há mais ou menos três anos. E olha que eu sou bastante intempestiva. Mas nesse caminho em que eu me estiquei para alcançar os outros lugares, eu encontrei um lugar em que meu coração pudesse ficar. E encontrei esse lugar em Guarapuava mesmo. Só precisei olhar pro lado. 

Lembro de uma questão de análise: eu sinto como se eu não tivesse uma cidade. Estou sempre indo e voltando, voltando e indo. E as viagens. Elas fazem parte de mim. E a minha casa vai perdendo o jeito de casa e vai ficando cada vez mais parecida com um lugar de passagem. E assim eu me despedi de várias casas. Casas que eu montei e que me fizeram descobrir dois talentos: eu sei montar e desmontar uma casa. E eu gosto de me mudar. E quanto mais eu recusei a me mudar de mim, mais eu passei a não me importar em me mudar de casa.

Você vai deixar suas coisas. Os móveis que você mandou fazer. Os objetos que você gosta. Alguns eu vou levar. Outros eu vou dar. Outros minha mãe guarda naquela casa pra onde eu posso voltar buscar. Uma vez um professor disse que a rodoviária era o lugar mais fácil de admirar a fragilidade humana: olhe para o tamanho da mala. E eu tenho um pouco de vergonha toda vez que preciso despachar bagagem. 

Mas tem bagagem que não dá pra despachar. 

É essa bagagem que dá pra somar. E é isso que eu venho fazendo desde que eu tive uma sorte na vida: a sorte de encontrar alguém com quem eu possa dividir toda a minha dor e meu amor. Embora o caminho até eu aprender a dividir tenha sido bem comprido. 

Há alguns meses meu pai disse que meu namorado tem uma característica importante para quem quer casar. Ele tem paciência. Ele teve que ter muita porque esse meu jeito intempestivo foi como um trator. Eu fiz alguns estragos que consegui consertar. Sorte, ele diria. Você é uma pessoa de sorte que conta demais com a sorte. Sou mesmo. 

Mas foi duro comprar passagens mês a mês nos últimos anos para ir até Brasília. Essa cidade que eu gosto tanto. Toda vez, eu digo toda vez mesmo que eu vou pra lá, eu quero passear de carro e ver. A cidade sem esquinas, a cidade planejada, a cidade quente, a cidade em que faz frio à noite e precisa levar uma blusinha, mesmo pra quem vem do sul. 

Leva um abrigo, filha, diria meu pai. Em Brasília mês a mês eu fui atrás do meu abrigo. E se ontem comprei a minha passagem só de ida para lá, hoje comprei a última em que vou de visita. Porque depois é a minha casa. Não sei se pra sempre. A vida muda muito. Mas agora eu não viajo mais sozinha. E eu sei que eu posso dividir o peso dessa bagagem.

Passagem. Passa, Gê.

PS: Escrevi esse post pensando nisso daqui:


Um comentário:

  1. Li seu texto, por acaso... E ele me trouxe conforto e esperança!
    Obrigada por isso!

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