Que nem limão

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terça-feira, 29 de novembro de 2016

Julguem a Rory um pouco menos

Só um pouco menos que já tá bom (esse post terá uma quantidade grande de spoilers).

Passei os últimos meses lendo muita coisa sobre o lançamento dos quatro episódios produzidos pela Netflix para Gilmore Girls. Acredito que como muitos que assistiram à série até o término dela (há dez anos), experimentei uma ansiedade que misturava sentimentos bons e ruins, afinal, os filmes de Sex and the City estão aí para provar que é possível acabar com suas boas recordações.

E Gilmore Girls era muito amor, não era? Não é toda menina de 16 anos que tem uma mãe de 32 que sabe ser mãe e amiga ao mesmo tempo. A minha me lembrava (e ainda lembra) muito mais a Emily do que a Lorelai. E eu tive amigas que tinham mães que pareciam muito com a Sra. Kim. Mas enfim, eu estou escrevendo esse texto com um objetivo: pedir para que vocês julguem menos a Rory.

Desde antes da estreia, acompanhei vários textos falando sobre ela e sobre as escolhas que ela fez. Um deles, o que mais me chamou a atenção e que nem vou linkar aqui, falava sobre como todos os namorados da Rory foram uns merdas e o quanto eles eram abusivos e escrotos. Olha, eu sei que você é muito desconstruído, mas que tal voltar um pouco no tempo? Não precisa ser lá para os 16 anos, volta para os seus 21, especialmente se você, como eu, já passou dos 30 e tem algumas histórias para contar. Eu poderia escrever sobre como até mesmo o Logan amadureceu nesses dez anos, mas ele não é meu assunto. É a Rory.

Esse texto foi motivado por duas coisas: li uma postagem aleatória no Facebook que dizia que Rory não tinha melhorado como pessoa dez anos depois. Depois recebi uma mensagem de uma amiga minha dizendo que eu tava ainda mais parecida com a Rory do que naquela época. Eu não entendia porque as pessoas achavam que eu parecia com ela naquela época e continuo curiosa e aguardando a resposta da minha amiga que vai ter que justificar em pelo menos três laudas essa afirmação. As duas situações aconteceram antes de eu começar a assistir aos quatro episódios. Aliás, fica a dica: mesmo essa opinião de que a Rory não teria melhorado como pessoa é uma chatice. Não tem mesmo como você não fazer nenhum comentário na timeline? Nenhunzinho? Eu consigo, você consegue. 

Enfim. Fui assistir. Encontrei uma Rory com 32 anos (minha idade e idade da Lorelai quando começamos a assistir a série). Achei Inverno ruim porque parecia que elas estavam aquecendo. Parecia ensaio e os diálogos meio artificiais. Mas acho que toda a primeira cena tem um subtexto. O encontro ali não era só entre as duas personagens, mas entre as duas atrizes, que demonstram naquele diálogo no coreto o quanto aquele tempo as deixou enferrujadas. Aliás, se você assistir de novo à primeira temporada, vai notar que esse tom meio travado existia ali também. A Rory com 32 anos está viajando. Ela oscila entre Londres e EUA e logo a gente descobre que não é porque ela está bem sucedida, ao contrário do que seus três celulares tentam afirmar. 

Ela está oscilando entre as duas cidades porque não tem um lugar que seja seu. Entendemos que ela escreveu uma matéria que teve uma grande repercussão, mas que as outras coisas que ela andou fazendo foram apenas isso: outras coisas. O que a gente sabe sobre ela é que ela está tentando: tentando escrever um livro sobre uma criatura excêntrica e tentando trabalhar em um veículo importante. Enquanto isso, ela deixa passar outras oportunidades, como trabalhar em um site que funciona como funcionam os negócios moderninhos dos nossos tempos: gente jovem e descolada, trabalhando em ambientes coloridos que pagam muito mal. 

O que mais descobrimos? Que ela continua tendo um contato próximo com a mãe, com a avó, com a Lane, com a Paris, com o Logan. No decorrer dos quatro episódios ela tem encontros com Dean, Jess e Cristopher, Com todos eles o tom é de extrema consideração, respeito e afeto. São pessoas que estão na vida dela há muito tempo, e que permanecem seja em um lugar de nostalgia, como Jess e Dean, seja em seu lugar cativo, como os outros. Sabe, é muito difícil manter as pessoas nesses lugares (cativos e de nostalgia) com o passar do tempo. 

Mas Rory está perdida com 32 anos. E parte disso pode ser entendido por toda a trajetória da Lorelai que fugiu de uma bolha de proteção que ela vivia com Richard e Emily e quis escapar. Ela fez isso com uma filha, que era mais do que isso, como o Cristopher foi muito perspicaz em notar. Aliás, caso não fossem mais do que mãe a filha, o seriado não teria razão para acontecer e menos ainda o livro que se torna a tábua de salvação da Rory. É claro que como a problematização está entranhada em nossas veias, a gente pode facilmente dizer que o Cristopher foi mais um cara que seguiu a vida, foi um pai ausente em termos afetivos e financeiros durante muito tempo. Quando bancou a faculdade da Rory foi com dinheiro de uma herança, ou seja, dinheiro que o colocava no legítimo lugar de herdeiro do qual tanto ele quanto a Lorelai tentaram escapar. É por isso que, diferente de nós, que julgávamos Cristopher, a Lorelai achava que ele precisava encontrar o caminho. 

Só que a Lorelai escapou de uma bolha e criou outra para si e Rory. Ela era inteligente, competente e poderia ter feito grandes coisas. Mas não fez. Não fazendo, projetou esses desejos em quem? Emily e Lorelai têm muitas coisas em comum. E é muito difícil para ela admitir isso, talvez por isso a relação das duas sempre vai ser imersa por ressentimentos. Para Emily, Lorelai é tão intransponível porque nunca percebeu que, na tentativa de enquadrá-la na posição social, havia amor. O amor que ela podia e sabia dar. Lorelai fez com a Rory algo muito parecido, só que com outras cores e tons.

Mas a Rory quis escapar do mesmo jeito. Ela foi superprotegida em uma cidade em que era um prodígio. Ela era amada e considerada por todos os adultos que foram importantes em seu crescimento porque ajudaram uma mãe adolescente. Eram mais do que amigos, eram espécies de pais e tios. Ela carregava uma marca em Stars Hollow: ela era especial porque ela era responsável, inteligente, amorosa, amiga e ajudava os outros. Você já foi considerado especial na infância e quando saiu da bolha descobriu que não era? A Rory sim.

Quando ela começa a sair da bolha, que é quando ela vai para Chilton, ela enfrenta dificuldades, mas ainda assim, fica amiga de alguém que lhe faz oposição, só disso já faz dela uma pessoa melhor do que muita gente que só consegue se relacionar com quem se identifica. É em Chilton que a gente descobre que ela não é uma banana. Que ela enfrenta as situações e que ela não se importa em não ser amada por aquelas pessoas. Ali ela ainda tem o reconhecimento dos adultos: ela é ainda brilhante.

Na universidade isso muda de figura, e isso tem a ver com o fato de que o relacionamento dela com o Logan não é aceito pela família dele. A Rory realmente não levava jeito para ser jornalista ou não levava jeito para ser a esposa do Logan? Para ele, que conhecia a própria família, fica muito claro que era a segunda opção. E o encontro no restaurante com o pai dele deixa muito claro: a questão não era com a Rory jornalista, mas com a Rory nora. E o Logan, que diferente de Cristopher aceitou isso bem cedo, tenta uma via conciliatória: gosta dela, e isso é óbvio, mas não quer perder o seu lugar no império. O pai da Rory levou muito mais tempo que o Logan para assumir isso, mas no final, tava lá.

Bom, aí você pode dizer: como assim você afirma que ele gostava dela? Se ele gostasse ele não estaria com a francesa (de quem a gente só vê as pernas e ouve a voz). Olha, eu gostaria de viver em um mundo em que as coisas são simples assim e que a gente toma decisões apenas baseando-se na racionalidade e na ética do bem. Mas como eu não vivo, consigo dizer que é perfeitamente possível ele gostar muito da Rory e não ficar com ela. Ele gostar muito da francesa e desrespeitá-la. Eu não achava isso quando era mais nova. Eu julguei Rory quando ela transou com o casado Dean. Mas hoje eu tenho 32 anos e vivi. E sei que não é preto no branco. E que somos sujeitos divididos. Não fôssemos as coisas seriam muito simples e práticas.

E é justamente por causa dessa divisão subjetiva que eu concordo demais com esse post (que tem muitos spoilers). A frase final era óbvia e eu já sabia que ela estava vindo desde o último encontro entre o Logan e Rory e, especialmente, entre Rory e Cristopher. Ela foi ver o pai com um objetivo de tentar entender sua história. Porque é claro que ela não é obtusa a ponto de não perceber que o que acontecia com ela, tinha traços de semelhança com o que acontecia com a mãe. E ela foi lá perguntar para um dos coadjuvantes: ela queria saber. E ela fez isso depois de escrever um livro sobre as duas, ou seja, sob o efeito que a escrita produz em quem conta uma história: recordar, repetir e elaborar. A repetição é algo muito sério e importante na nossa vida, gente. Não a subestimem.

Eu não sei quem é o grande amor da vida da Rory. Mas acho que o que Gilmore Girls me ensinou é que as coisas não são apenas sobre os caras que a gente ama. Aliás, que é possível amar um cara e ainda assim, seguir a vida sem ele porque sim.

Vocês já assistiram Boyhood? Tem uma cena que o menino, quase adulto, tá conversando com um amigo e dizendo que ele achava que quando crescesse a confusão ia passar. Mas que ele olha para a mãe dele e vê ela tão confusa quanto ele. E é isso. Quando eu tinha 18 e via Lorelai com 32, achava ela muito foda. Revendo os episódios anteriores, eu a achei imatura em muitos momentos. Vendo Rory, em Um ano para recordar, com 32, sem emprego, sem saber o que fazer e voltando para casa e para um lugar em que fosse reconhecida (por mais que ela deixe claro o quanto não estava de volta) me faz declinar de qualquer possibilidade de julgá-la. 

A última frase faz a gente pensar nos desdobramentos dessa vida: como Lorelai, Rory vai seguir a via da repetição sendo uma pessoa respeitada em Stars Hollow e criando seu bebê longe do pai. Ou não? Quem somos nós para dizer o que significa a elaboração na vida de uma outra pessoa ou quanto ela é um péssimo ser humano?

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