Que nem limão

Que nem limão

quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014

Manchete de ontem

O que eu vou escrever hoje pode parecer meio manchete de ontem, a menos, é claro, que a gente tenha um pouquinho só de bom senso para compreender que o que aconteceu, poderia estar nos jornais de hoje, de ontem, de antes de ontem, no dia anterior e assim por diante. 

Falo sobre o rapaz, que, depois de espancado e esfaqueado, foi preso a um poste por um grupo que se autointitula "justiceiros". Se você preferir parar por aqui, sem ler as bobagens mal fundamentadas que eu escrevo, sugiro duas leituras. A primeira é do blog do Sakamoto sobre o assunto. A segunda, sobre o mesmo assunto (eu encontrei adivinhem onde, amiguinhos?).

Por que eu indico as duas leituras? Porque elas retratam da forma mais acessível dois pontos de vista que em muitos pontos se confrontam. O primeiro confronto: o autor do primeiro texto fala sobre a importância em fazer com que a justiça que firma as bases de uma sociedade organizada funcione. O segundo parece que também, mas quando ele divide os envolvidos em aqueles que estão do "lado de lá" (a maloquerada) e os que estão do lado de cá (pleiboizada/classe A e B/classe C e D que fez as "escolhas certas") a gente já sabe em nome de quem ele fala e do que.

Já começa mal quando diz que "não necessariamente vai aplaudir os justiceiros". Ora bolas, ou você aplaude ou não. Existe uma coisa muito bacana sobre situações como essa: não dá pra você ficar em cima do muro. E se você está em cima do muro, é porque você está com medo de expor para qual lado quer cair. E se você está fazendo isso, talvez a razão seja o medo de mostrar seus pensamentos, sentimentos, enfim, de se posicionar. Por isso, meus amigos,  não dá para "não necessariamente aplaudir". Ou aplaudimos, ou chocamo-nos com a situação. 

E por que, cidadã de bem que sou, que pago meus impostos (e que ainda assim fico sem água no calor, igual aos outros) deveria me chocar? Não vale aqui o argumento de que não aguentamos mais? De que a justiça em nosso país não funciona, que nossas leis são brandas, que nossa pena é curta, que nossas cadeias deveriam ser ainda piores (onde já se viu bandido tendo água gelada nesse calor?)? 

A resposta é: porque se a lei for pensada e executada para cada cidadão a partir de suas peculiaridades (branco, preto, bandido, milionário, rei, capitão, soldado, ladrão, mocinho bonito do meu coração) vai chegar o momento em que um novo caos vai existir. O caos da barbárie, da falta completa de segurança, da impotência.

Você, amigo reaça do meu S2 (e que eu mantenho na minha timeline só pra me manter informada sobre as atrocidades que são ditas por aí), pode me dizer:  "Mas, Angela, as pessoas não aguentam mais uma polícia ineficiente, não poder andar na rua com seus tênis de quinhentos reais e suas correntes bonitas de prata. Você acha que isso é justiça?".

E eu respondo com todo carinho, te pegando pela mão, me abaixando para nossos olhos ficarem  no mesmo nível, igual a super nanny ensinou: "A Angela não está dizendo que esse mundo tá muito legal de se viver. A Angela não gosta de corrupção policial, mas ela também não gosta do quanto eles são mal pagos, da organização da segurança pública e, especialmente, a Angela não gosta nada de saber que o irmão do policial que aceita propina de traficante, aceitou molhar a mão naquele dia que você só tava a uns dez quilômetros acima da velocidade permitida na via".

Com isso em toda essa minha prolixidade desmedida eu quero dizer que eu sou do lado dos que não aplaudem porque reconhecem que a raiz dessa questão está marcada, dentre muitos simbolismos, na linguagem do autor do segundo post quando ele diz "Nós não podemos ser como eles". 

Como eles quem, cara pálida?

O problema dos "justiceiros" é estarem diante de uma lei que os considera iguais (mal e porcamente, mas, em tese, considera). Se são iguais, não podem ser judiados, espancados, linchados. Se são iguais podem andar pelos mesmos cantos que eu eu. Se são iguais, podem vir até mim, da mesma forma que eu vou até eles para comprar minhas dorgas (eu não, mãe, estou falando no sentido geral). Se são iguais, cedo ou tarde eu me percebo implicada nessa questão toda que tem a ver com o fato de eu saber que existe um lado de lá e um lado de cá.

Esses dois lados já indicam a necessidade de se reformular a nossa organização social. Mas isso se faz com coerência, discussão e sobretudo consciência social - e não moral, NUNCA moral. Não se faz, certamente, a partir de interesses individuais, classistas e justiça com as próprias mãos. 

Termino com a história ouvida em uma palestra uma vez: imaginem um juiz muito conhecido, que tinha um tio dos mais reacionários. Daqueles que aplaudiram o que os tais justiceiros fizeram. Um belo dia, de madrugada, liga esse tio pro juiz dizendo que ele tem que ajudar o primo que foi preso portando uma boa quantidade de bala (e não era da goma). O juiz responde pra ele que não vai fazer nada. O tio se desespera e pergunta por que. O juiz responde: "Porque eu penso a mesma coisa que você, tio". O tio fica atônito e ele completa: "Traficante tem mais é que se foder".

Moral da história: hoje o espancado e acorrentado era  bandido, preto e pobre. Se você aplaudir, não vai poder reclamar quando sobrar pra você. E pode apostar que se a lógica que seguirmos daqui pra frente for a dessa "justiça" uma hora ou outra vai sobrar para todos. E o nome disso, meu amigo, é repressão da feia.

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